domingo, março 26, 2006

Laços de vida


Se não soubesse que eras uma pessoa diferente, podia ter-me apaixonado por ti. Não confundas a palavra diferente com estranho, esquisito ou qualquer outro adjectivo que encerre qualquer juízo de valor. Nada disso. Apenas diferente, enquanto algo não igual àquilo a que estou habituada.Eu sei que tu sabes o que te quero dizer. Sempre me entendeste muito bem, mesmo quase sem palavras. Quando fui tua aluna, tinhas sempre tempo para ouvir as minhas perguntas e esclarecer as minhas dúvidas. E, como eras o professor mais bonito da universidade, eu tinha sempre muitas dúvidas por inventar e perguntas para te fazer. Eu e mais uma dúzia de rapazes e raparigas, todos interessados em ti, deslumbrados com o teu charme, a tua calma e o teu equilíbrio, como se soubesses sempre a resposta certa e possuísses um inventário de todas soluções dos males do coração.Tudo isso foi há uns anos, não interessa quantos, porque quando encontramos uma alma gémea o tempo deixa de contar, é como se nos conhecêssemos desde miúdos, tu a brincar comigo na praia dos verões da nossa imaginação, primeiro muito magro, esguio, imberbe e muito loiro e depois, nos anos seguintes, a ganhar corpo e barba até te tornares no homem que és, o professor e investigador brilhante que dá palestras como quem vai ao cinema e seduz com a sua voz grave plateias de ouvintes, sejam eles investigadores ou pacientes.Somos os dois de um planeta longínquo onde todos os seres vivos inteligentes têm altos níveis de oxitocina, esse maravilhoso milagre do organismo que faz com que sejamos os melhores amigos do mundo, as mães mais dedicadas, os pais mais atentos, os irmãos mais compreensivos e os amantes mais generosos. Somos os dois feitos dessa massa rara que constrói pontes, casas e países. Tu chamas-me a Iluminadora porque vês dentro de mim milhões de luzinhas que iluminam a alma e o caminho daqueles que amo e protejo e eu não te chamo porque não me posso apaixonar por ti. Como és cardiologista, conheces melhor do que ninguém as falhas do coração, esse músculo sobrevivente e heróico que só descansa quando pára e que é tão forte e inteligente que pode ser transplantado sem nunca perder as suas qualidades. Conheces o meu coração de mulher, mais pequeno do que o dos homens, mas também mais forte e seguro, menos atreito a mudanças de amor ou obstruções à passagem do sangue. Sei que sabes o que te quero dizer, mesmo quando me calo, mesmo quando não te vejo, mesmo quando tenho saudades de um futuro perfeito que só existe na tua e na minha imaginação. Sabes que o meu coração já foi várias vezes hospitalizado, quando aqueles que amei não eram abençoados pela magia da oxitocina e saíam da minha vida com uma leviandade que me entristecia. Sabes que de todas essas vezes o meu coração se fortaleceu, porque sou como tu, tudo o que não me mata me torna mais forte. E também sabes que um coração forte pode, por uma razão que a ciência e a razão desconhecem, parar de repente para nunca mais voltar a bater.Por isso prefiro que ele continue a bater no ritmo da amizade, sem choques nem sobressaltos, antes que as dúvidas se instalem nas artérias e obstruam a passagem do sangue. Prefiro ver-te como és, sereno, equilibrado, inteligente, generoso e belo, um amigo que ficará para sempre na minha vida sem me entrar para o coração, cansado de olhar para dentro e ver espaços vazios deixamos por aqueles, que, ao contrário de nós, não conhecem a magia da oxitocina e não sabem criar laços para a toda a vida.
in JN 26/03/06

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